Sábado resolvi quitar uma dívida com meu passado. Mal sabia eu que estava indo ao encontro das raízes do futebol, ainda vivíssimas, apesar de tudo.
Na entrada, a bilheteira Rosane informa que o ingresso é R$ 10,00 a inteira. Não entendi quando vi o valor de R$ 20,00 impresso. "É que o Maciel dá uma força, e aí a gente cobra esse valor". Maciel é o atual presidente do São Cristóvão, que naquela tarde jogaria com o Aperibeense pela Série B do Campeonato Carioca. Um subsídio do comandante para aumentar o número de presentes.
Chego às 16h30, está rolando a preliminar com os juniores. Atrás do gol fica a velha guarda da "torcida cadete", apelido do clube que fica próximo ao CPOR, de formação de cadetes do exército. Um deles usa a camisa do Tabajara F.C.; outro, o único jovem do grupo, veste a número 2, toda rosa (as cores do São Cri-Cri são preto, rosa e branco). Os demais são o estereótipo dos velhinhos de fila de banco - a ranzinzice dessa vez se manifesta, claro, contra o trio de arbitragem.
A sala de troféus está fechada, mas não é tão vazia como se imagina. Na porta, uma foto ilustrada do time do último título: o Campeonato Estadual de 1926 - simplesmente o ano em que minha única avó ainda viva nasceu. Ao lado, a estátua do padroeiro dos motoristas, que dá nome ao clube.
A cantina humilde lembra aquelas de escola: os clássicos (e massudos) joelhos, refrigerantes e biscoitos mil. Uma televisão, ironicamente, mostra Ronaldo falando de sua carreira. É notório o contraste do conforto milionário do filho ilustre com a ferrugem da lâmpada e os azulejos antigos. O gramado, não faz muito tempo, era mantido rentinho ao chão graças ao profissionalismo de várias ovelhas.
Atrás da arquibancada de cinco degraus, há um campo de futebol soçaite que os times usam pro aquecimento. Tudo a céu aberto, a não ser os "camarotes": bancadas do prédio administrativo que fica atrás do gol. Um baixinho com bigode de Hitler e temperamento idem parece ser o zelador. Arrumou confusão com o time inteiro do Aperibeense que ousou aquecer-se de chuteiras, e não de tênis, no campo soçaite. Principalmente com o camisa 11, que lhe pareceu atrevido. "Tu viu a atitude dele? Eu não gostei foi da atitude", dizia, justificando seu zelo. Mais tarde ligou pro presidente do clube - o Maciel - perguntando se um sócio que usava camisa do Flamengo poderia continuar nas dependências do clube. Parece ofensa mesmo: estádio pequeno e ainda tendo que dividir com os outros? Depois, outra aporrinhação: "Cadê a ambulância??", gritava no rádio para os responsáveis por trazer o equipamento indispensável em qualquer jogo, seja de que divisão for.
Acima de uma pretensiosa tribuna de imprensa, a única publicidade do estádio está pintada na parede: "Pousada Locomotiva 206, em Conservatória".
Celso, um barbudo que lembra os personagens das histórias de Asterix, já está rouco na preliminar. Sabe o nome de todos os jogadores, mesmo da categoria junior (para azar dos atletas). Parece ser da diretoria. Ao seu lado está Raimundo, historiador informal do clube: já escreveu dois livros sobre o São Cristóvão. Um conta as memórias do título de 1926; outro, a trajetória dos Cadetes até os dias atuais. Não se manifesta muito, mas quando o bandeirinha marca um esquizofrênico impedimento após cobrança de lateral, parte pro alambrado pra espinafrar a árvore genealógica do árbitro auxiliar.
Sentado sobre uma almofadinha, daquelas feitas pro arquibaldo clássico, está Marcus Vinicius. Camisa do São Cristóvão comprada numa feira de colecionador, boné com cara do primeiro que viu pela frente antes de sair de casa, chinelos. Está acompanhado do filho, Marco Túlio, de 11 anos, moreno, cabelos pretos e inquieto com a aventura da Figueira de Melo. Nas mãos do garoto, um pedaço de papelão com o escudo do clube desenhado à mão com caneta Bic e a inscrição "Vamo ganhar".
Por que torcer pro São Cristóvão? "Somos botafoguenses, mas o segundo time é o São Cri-Cri, pois vários parentes na família eram torcedores fanáticos do clube", conta Marcus Vinicius. O filho já está no alambrado saudando a entrada do time profissional com seu cartaz estilizado. Vai passar o jogo inteiro em volta do campo e pelos camarotes pra acompanhar o time. Quando o pai pergunta por que ficou atrás do gol que o São Cristóvão defendia, em vez de acompanhar os ataques e possíveis gols, responde maroto: "Eu tava xingando o juiz".
Marcus também é um colecionador de revistas sobre o Campeonato Carioca, tem exemplares desde 1940. Fala das agruras de ser da segunda divisão: "Pro São Cristóvão ser campeão, tem que disputar 42 jogos até o fim do ano. É mais do que o Campeonato Brasileiro da Série A, que são 38 partidas". Lembra de 1973, quando seus dois times estiveram em rodada dupla no Maracanã. Na preliminar, o Botafogo perdeu de 2 x 0 para o Bonsucesso. O jogo principal era São Cristóvão x Flamengo, e os rubro-negros que tinham sacaneado os botafoguenses tiveram que aguentar a roda da fortuna: 1 x 0 pros Cadetes, no Maracanã lotado.
O jogo parece fácil pros donos da casa. O Aperibeense arma uma retranca e não consegue acertar passes fáceis, que dirá contra-ataques perigosos. Logo os bagunceiros o apelidam de "Aperebeense". Celso parece o próprio técnico do São Cri-Cri. Como todo torcedor fanático, sente que está diante de nada menos que a final do Mundial Interclubes. "Ele é muito nervoso!", ri Marcus Vinicius. Conta que um dia o São Cristóvão perdeu de 4 x 0 pro Bonsucesso (que algoz!) e Celso ficou deprimido, as pessoas o chamavam para ir embora e ele não ia, ficou um bom tempo na fossa que uma derrota acachapante pode causar. Marcus estranhou. "Achei que ele estivesse acostumado. Ultimamente, pro São Cristóvão a derrota é o normal".
Segunda divisão não discrimina ninguém, nem nas fatalidades. O camisa 11 do Aperibeense tem um mal súbito e desmaia sozinho no canto do gramado. O pequeno Hitler chama a ambulância (não se sabe se pensou "Deus castiga atrevimentos" nessa hora). Entra em campo um casal de enfermeiros, ele magro e ela gordinha. Os bagunceiros, honrando as tradições escolares, não perdoam. O camisa 11 levanta, aparentemente sem problemas. Daí em diante os bagunceiros só vão chamá-lo de Padiola.
O primeiro tempo termina 0 x 0. A maioria dos presentes vai à cantina. Marcus Vinicius e Marco Túlio dividem um Guaraviton (patrocinador do Botafogo) e comem um joelho cada um. "Tá frio", reclama o pai. O São Cristóvão parte pra cima no segundo tempo. O camisa 18 entrou e animou a partida, criou várias jogadas, driblou, causou cartões amarelos. Os Cadetes erram o alvo, pra tortura de Celso: chutam pra fora na pequena área, cabeceiam na trave, quase gol olímpico... Na improbabilidade do futebol, o Aperibeense arma um contra-ataque, o quarto-zagueiro da casa capota no ar e a bola sobra pro Padiola, de cara pro goleiro, quase na marca do pênalti - bola pra fora, de maneira inacreditável. Os apelidos parecem fazer justiça.
Um jogador do Aperibeense é expulso, aparentemente de maneira infantil. (Assistir qualquer jogo ao vivo expõe como nossas certezas são eternamente dependentes do replay). Os próprios colegas parecem não ter gostado, principalmente o Padiola. Na parada técnica, o camisa 11 arruma briga com o time inteiro, não dá pra saber por quê (repórter de campo também faz falta). Parecia plenamente recuperado do mal súbito.
Faltando menos de dez minutos para o fim, o São Cristóvão consegue uma falta perto da área. Cruzamento e... gol! Do camisa 7, um branquinho e loirinho batizado de "Garoto Juca" pelos bagunceiros. Até o fim do jogo vai ser um sufoco, já que o time da casa recua e o Aperibeense vai pro desespero. O lance mais incrível acontece fora de campo: Celso vai embora antes da partida terminar.
No apito final, aplausos aos vitoriosos. Marcus Vinicius e o filho vão em direção à saída de campo dos atletas. O garoto quer tirar fotos com os jogadores. Nenhum deles é famoso ou já apareceu na TV.
Nasci no Engenho Novo, mas fui criado no bairro imperial de São Cristóvão. Morei na Rua São Luiz Gonzaga, depois no Campo de São Cristóvão, estudei no Colégio Pedro II, corri e joguei bola na Quinta da Boa Vista. Só saí de lá ao casar, já com 27 anos.
Só que cometi um pecado imperdoável para um autêntico morador que adora futebol: nunca tinha ido ao acanhado estádio da Rua Figueira de Melo assistir a um jogo do São Cristóvão Futebol e Regatas.
Ao pagar essa dívida, acabei indo ao encontro da gênese do esporte. Ou como já foi dito por alguém, do "futebol em estado puro". Naquela tarde de sábado parecia ter voltado a 1926, quando não havia TV, marketing, salários milionários, elitização dos estádios, confusões extra-campo. Apenas paixão, fidelidade, empenho, idiossincrasias, dedicação, alegria, tristeza. Sem elementos como esses, não há futebol.
Mas era 2011, portanto não se trata de nostalgia. É justamente a constatação que apesar dos vaticínios propagados (e perpetrados) por várias direções, o futebol não morre, mesmo no acanhado estádio da Figueira de Melo. Só está aguardando as testemunhas.
ATUALIZAÇÃO: blog do Marco Túlio
À direita, os camarotes dos Cadetes
O Fenômeno na TV
Bola na área, o "Garoto Juca" (camisa 7, último à direita), se prepara pra subir...
... gol do São Cri-Cri!
Outros vão nascer aqui?
2 comentários:
Pô, eu e meu pai não somos como parece, mas valeu a reportagem.
De novo meu blog:
http://marcotuliopaixoporfutebol.blogspot.com/
Segue o da minha mãe também:
http://futebolefutilidades.blogspot.com/
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